O processo regenerativo do Sudoeste

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O processo regenerativo do Sudoeste está em andamento e já nada o poderá travar.

Está em pleno curso a aproximação de várias forças vivas desta bioregião que, quebrando fronteiras administrativas, há vários anos ensaiam soluções de futuro e se têm vindo a reconhecer, apoiar e unir em torno de um propósito colectivo comum. Esse propósito é a regeneração do Sudoeste como um território rural de excepcional valor a partir do potencial da sua identidade, abraçando a sabedoria ancestral da sua comunidade mais antiga e o conhecimento contemporâneo que uma nova comunidade multi-cultural constrói a cada dia. Uma paisagem íntegra ainda presente, fruto da combinação de ecossistemas naturais e humanizados com o conhecimento empírico adquirido ao longo de dezenas, centenas ou milhares de anos.

O que falta? Um novo sistema de auto-organização robusto, orgânico, inclusivo e dinâmico que identifique os contornos desse propósito em cada momento, gerando confiança e um efeito catalisador nas mudanças que cada um pode operar. Este sistema está a ser criado enquanto eu escrevo estas linhas e todos são convidados a fazer a sua parte, à sua medida e ao seu ritmo, para que recuperemos o destino deste território para as mãos de quem o quer construir com consciência, dedicação e sentido de responsabilidade.

Afinal, em que mãos está o destino do Sudoeste?

A área de intervenção da Rota Vicentina (entre Santiago do Cacém e Lagos) tem tanto de mágico e inspirador, quanto de angustiante e explosivo. Há dias veio a público mais uma reportagem sobre os impactos negativos da agricultura intensiva no Perímetro de Rega do Mira, que não é nem poderá ser a imagem cimentada de todo este território. Genericamente, quem tem uma ligação profunda à identidade deste lugar promove o seu desenvolvimento, tentando resistir à pressão das grandes explorações extractivistas apoiadas pela legislação, por poderosos lobbies e em muitos casos por fundos públicos que criam um custo incomensurável para o território.

Podemos discutir se a causa é ganância ou ignorância, mas a consequência é o fervilhar gradual e concertado de uma comunidade decidida a reconquistar o seu direito soberano a desenhar e liderar um modelo de desenvolvimento que verdadeiramente a sirva, a si e às gerações que a seguem.

O modelo de desenvolvimento rural do futuro e o turismo consciente

Ainda não chegamos a um modelo sustentável e já temos que nos confrontar com o paradigma da regeneração. Uma ambição tão gigantesca quanto básica: sermos uma paisagem consciente, integrada, abundante e em evolução.

É urgente catalisar a transição de territórios rurais, que não podem ser vistos como meras periferias urbanas, mas antes como locais com forte incidência de produção agrícola e florestal, nomeadamente alimentar, que servirá as suas necessidades em primeiro lugar. Esta produção terá que estar em profunda sintonia com o respectivo bioma e com a identidade do lugar. A cultura instalada não apenas alimentará essa mesma produção com aprendizagem empírica continuada, mas a reforçará com criatividade, organização e resiliência. Por outro lado, é este o território que proporcionará um espaço privilegiado para visitação, usufruto, aprendizagem e inspiração, não apenas da natureza e do mundo rural, mas sobretudo de um modo de vida regenerativo e da singularidade que cada território tem a oferecer, que é a sua identidade.

A chave para este trabalho está na comunidade, que em alguns casos seguem desfragmentadas, frágeis e individualistas, crentes em ideologias e guiadas por caprichos. Mas no Sudoeste, a situação não é esta. Nos últimos anos, a cultura tradicional encontrou-se com várias camadas multiculturais, o que resultou num fervilhar de aspirações e ideias criativas e resilientes, que apenas imploram por um elemento conector, por uma estratégia comum, uma identidade reconhecida, um propósito colectivo assumido e inclusivo que todos possam ir seguindo com confiança, capacidade de avaliação e consciência dos impactos. A montante, um sistema de auscultação da comunidade que garanta genuína curiosidade e empatia, que nomeie a identidade local na qual todos se revejam, e que todos possam expressar em manifestações culturais, artísticas, sociais e económicas.

Metodologia para estratégia comunitária: a experimentação é a regra


A experimentação é a regra porque é assumido que não existem estratégias claras de como adoptar o paradigma regenerativo nas nossas culturas.

Este mês estive em Lagos na formação “Catalisadores Comunitários para economias transformativas” do Algarve e Sudoeste Alentejano, a convite do Colectivo Orla Design. Utilizámos este novo processo de design colaborativo para, em grupo, desenhamos uma estratégia para a regeneração do nosso território a partir do seu potencial efectivo e em curso. O que aprendi é que esta ferramenta existe e não pode ser mais adequada ao desafio. Há várias razões para esta afirmação, mas a primeira é que o pressuposto de base é que esta equação é demasiado complexa e dinâmica e precisa de instrumentos de sustentação ágeis e flexíveis.
Há muitos anos que tento contribuir para a identificação de um caminho que inspire o grupo que a Rota Vicentina representa, e descobri sobretudo que “o processo pessoal é a chave para a compreensão e ligação com o processo colectivo”. Algo muito difícil de incluir no discurso público sem descredibilizar o trabalho de base, mas não tanto quando integrado num sistema de ferramentas de desenvolvimento territorial.

As palavras acima são apresentadas pelo sistema usado nesta formação, “WeLand – Dar Sentido ao Lugar”, definido como uma jornada de linguagem de padrões. Apresenta um processo de design regenerativo que permite às comunidades conceber colaborativamente os seus meios de vida através de uma abordagem baseada na natureza, utilizando o fluxo natural da vida, do qual os meios de subsistência modernos tendem a estar totalmente desconectados. […] Dar sentido ao lugar requer avançar para a totalidade e confiança; por outras palavras, para a integridade. […] WeLand proporciona um processo de colaboração que se centra no fluxo da natureza para co-criar estratégias e projectos bem sucedidos, reforçando uma comunicação e acção eficazes entre diferentes actores que podem moldar espaços em lugares, trabalhando em conjunto no impulsionamento de mudanças sociais significativas”.

O tema do processo pessoal é crucial, precisamente porque é ele que garante a necessária integridade e capacidade de conhecer e dialogar profundamente com o território. Neste processo “não há heróis, apenas pessoas criando e participando de forma colaborativa para a transformação regenerativa do seu território”.

A metodologia é gratuita e está disponível online com todas as ferramentas sugeridas.

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A Identidade do Sudoeste


É a identidade que dá consistência a todo o processo e é a sua designação que traz sentido de pertença e enraizamento.

A co-criação de soluções que sejam simultaneamente enraizadas e permeáveis à mudança exige uma representação simbólica do propósito colectivo que inspire a comunidade a criar a melhor solução em cada momento.

Se em tempos idos a identidade de um território se construía de forma espontânea ao longo de várias gerações, os tempos modernos pressupõem um ritmo de mudança que exige ferramentas ágeis de revisitação, ressignificação e re-designação dessa identidade a cada momento.
É um desígnio comum ao nosso tempo, e cada território terá que activar este processo, sendo a partilha um importante acelerador para esta aprendizagem.

Na Rota Vicentina iniciámos este trabalho há alguns anos com o lançamento do projecto ID, que está em curso e agora beneficiará destas ferramentas para prosseguir o trabalho de forma cada vez mais consistente. Mas partimos de algum trabalho feito, desde o Manifesto ao Guia ID, passando por algumas iniciativas que procuram materializar este conceito em ofertas de produtos e serviços das empresas turísticas e da comunidade.

Polinização cruzada com outras comunidades

Um segundo patamar de intervenção apoia-se na conexão a partir deste desafio comum: inter-cooperação entre comunidades emancipadas com informação e experiência, capazes de decidir de forma consciente e de se auto-responsabilizar pelo desenvolvimento do potencial do seu território.

Precisamos de garantir acesso a um panorama global da implementação das várias estratégias comunitárias de regeneração, investindo em “redes de redes” que extravasem o âmbito local, regional, nacional ou continental!

Verificar com partilha de informação que não estamos sozinhos, que nos vários cantos do mundo há outras comunidades às quais estamos ligados, a fazer exactamente o mesmo que nós: a criar soluções de emancipação colectiva a partir da singularidade individual dos seus elementos. Conhecer resultados, validar opções, aprender em conjunto.

É essa visão da inteligência colectiva que dará base de sustentação a micro e macro iniciativas, tão necessárias para seguirmos com sentido de pertença, motivação e realização.

Também aqui, a Rota Vicentina poderá ter um papel importante, enquanto estrutura em rede transversal a todo o território com alcance internacional, alimentando parcerias e intercâmbios com outras redes do país e do mundo, processo que se vai intensificando à medida que as várias redes vão sentindo esta mesma necessidade.

Começar pelo ponto em que estamos

Neste momento importa passar a palavra. Seguir sustentando pequenas redes, conversas, fóruns ou grupos comunitários, de moradores, de interesses comuns. Associações, cooperativas, colectivos, tertúlias. Investir simultaneamente em sistemas de comunicação digital, redes sociais, etc. E passar a palavra entre todos: cada um na sua jornada, representamos uma inteligência colectiva de valor incalculável. Vamos articulando encontros, auscultando necessidades, aspirações, processos em curso. Mapeando, reconhecendo, passando a palavra. No momento certo, quando nos convidarmos mutuamente a olhar para o todo, veremos uma promessa bem real de uma rede coesa e borbulhante que acontece sem nós, mas que se fortalece com a nossa acção.

Como cidadã e na dinâmica territorial e associativa da Rota Vicentina é isso que continuarei a fazer, neste blog, em cada reunião, nas feiras locais, nos eventos, nas redes sociais e em encontros presenciais que promoveremos com este propósito.


O dom do nosso tempo é a oportunidade de dançar com a mudança e liderar processos transformadores e resilientes de regeneração.

Cabe-nos abraçar este desígnio com motivação e sabedoria.

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Marta Cabral

Nasceu em Lisboa no ano de 1975. Na Associação Rota Vicentina assume o papel de Presidente da Direcção. Nos tempos livres, gosta de caminhar, andar de bicicleta, ler, yoga, silêncio e festas!

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